Há tempos que leio e releio este texto da Eliane Brum sempre que preciso. Preciso primeiramente porque sou mãe. Mas também preciso porque muitas questões pessoais geram dúvidas e vazios que demandam respostas e soluções, que nem sempre encontro. Este texto me acalma, esclarece e sempre traz novas perspectivas e novos pensamentos a cerca da longa caminhada que é esta vida e a grande (e deliciosa) aventura de ser mãe. Queria registrar este texto aqui no blog para que fique como um ponto de encontro para perguntas que nem sempre tem respostas.
Meu filho você não merece nada
Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do
ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com
frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da
tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque
conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a
fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito,
porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da
felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.
Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é
fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à
cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus
pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que
já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua
genialidade.
Tenho me deparado com jovens que
esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde
o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram
ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando
isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos,
revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.
Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e
adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de
relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um
espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a
cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o
mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para
os insistentes.
Por que boa parte dessa nova
geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem
está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido
marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E
tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos
sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e
protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma
responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem
devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso
pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que
os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas
básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas
faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar
dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas
capacidades individuais?
Nossa classe média
parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom,
naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma
ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado
com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a
noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a
excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para
os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.
Da mesma forma que supostamente seria possível construir um
lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é
possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma
anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao
futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela
crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso.
Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.
Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e
de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham
lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é
que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e
ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as
decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e
que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.
A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes
pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar
dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça
desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado
quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a
condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com
os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se
não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.
Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por
aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo
que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem
considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de
se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que
pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque
isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído
sobre a ilusão da felicidade e da completude.
Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está
disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e
reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com
medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se
comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem
que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.
Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque
existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação
pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo
genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora
dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível
fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade –
e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo,
especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de
alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a
felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na
própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela
familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que
ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem
buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o
jogo funcionando.
O resultado disso é pais e
filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se
desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem
muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque
precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que
se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que
move, mas aquela que paralisa.
Quando
converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas
possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam
muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a
narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado
porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a
sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é
escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de
chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas.
Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.
Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão
importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é
dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar
comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da
vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas,
estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou
tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode
significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já
que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da
existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente
para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu
filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai
adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar
seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a
coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para
descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque
eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas
vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua
desistência.
Crescer é compreender que o fato
de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é
o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque
um dia ela acaba.